Acusado pela foto, salvo pela Defensoria: como um procedimento falho quase custou 50 anos de liberdade

Em Tribunal do Júri, defensora consegue absolvição de réu reconhecido por fotografia.

Por Ingra Tadaiesky
14 Mai de 2025, 3 dias atrás
Acusado pela foto, salvo pela Defensoria: como um procedimento falho quase custou 50 anos de liberdade

 

Por pouco João* não foi condenado a 50 anos de prisão por um crime que não cometeu. A acusação se baseava em um reconhecimento fotográfico sem qualquer respaldo em provas técnicas. Com a atuação da Defensoria Pública do Amapá (DPE-AP) no Tribunal do Júri, as fragilidades do processo foram expostas e o jovem foi absolvido.

A história começou em 2023, quando um taxista foi assassinado no município de Santana. Durante as investigações, João*, que estava em regime aberto por uma condenação anterior por tentativa de roubo, foi acusado como um dos suspeitos da autoria do homicídio. No entanto, quando o fato aconteceu, o rapaz estava na casa de sua mãe com sua família há quilômetros de distância.

Coagido por seus cúmplices para que incriminasse outra pessoa como coautor da morte, o autor confesso reconheceu João por fotografia. Nenhuma outra prova o colocava na cena do crime. O jovem teve sua prisão preventiva decretada por conta desse novo fato e retornou ao regime fechado, onde permaneceu de 2023 a 2025. Além disso, a soma das acusações contra ele poderiam levá-lo a 50 anos de prisão.

O caso de João evidencia um grave problema no sistema de justiça criminal: o uso de reconhecimento fotográfico sem a devida confirmação de outras provas. Laura Lélis, defensora pública que atuou no caso, conseguiu provar a negativa de autoria e a tese foi acolhida pela maioria dos jurados.

Ela demonstrou que não haviam elementos de prova que colocassem João como coautor do homicídio, então, foi demonstrado que o único elemento que ligava o assistido aos fatos era um reconhecimento fotográfico nulo, realizado por pessoas que sequer o conheciam. Dessa forma, o procedimento não poderia ser aceito isoladamente.

A defensora afirmou que o fato do assistido já responder a um processo criminal o estigmatizou e que, durante o júri, a acusação enfatizou excessivamente esse histórico, como se isso fosse uma prova de sua culpa no novo crime em questão.

“Os processos judiciais criminais tem que ser julgados com imparcialidade e de acordo com o fato que pessoa está sendo denunciada. O fato dessa pessoa ter outras condenações ou responder a um processo criminal de forma alguma deve significar uma presunção de culpa, porque tem que ser comprovada a existência da autoria e da materialidade do crime que está sendo apurado”, disse Laura.

Além disso, a defensora contou que essas acusações desqualificam a voz dos réus, não levando em consideração a sua versão da história.

“A versão das pessoas que respondem a crimes muitas vezes são desqualificadas, fazendo com que pessoas inocentes sejam condenadas a penas de crimes que não cometeram só por estarem dentro de um estereótipo. O simples fato de responderem a um processo criminal é o suficiente para condenar essas pessoas”, ressaltou Laura Lélis.

Reconhecimento Fotográfico

O reconhecimento de pessoas é rigorosamente disciplinado pelo Código de Processo Penal, no art. 226, CPP.

O reconhecimento fotográfico, o qual não possui previsão legal expressa, é realizado de forma rotineira no âmbito de investigações policiais, sendo alvo de diversos questionamentos perante a justiça.

No entanto, de acordo com a jurisprudência, a realização do procedimento de Reconhecimento Fotográfico para ser considerado válido, torna necessário que as normas previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) sejam obrigatoriamente seguidas.
Elas são:

“Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.“

Além desses critérios, qualquer reconhecimento precisa ser validado por outros elementos que comprovem a tese da autoria do réu. Esse entendimento, que busca reduzir erros judiciais graves, raramente é respeitado e resulta em diversas condenações baseadas em provas frágeis, sendo o reconhecimento fotográfico muitas vezes é marcado por irregularidades legais e psicológicas.

*nome fictício para resguardar a imagem do assistido